07/04/09

"A Aventura de um Fotógrafo"

Este é o conto do Italo Calvino, que o João comentou ontem, se encontra no livro: "Os amores difíceis", vou ver se consigo na íntegra, enquanto isso não rola, segue um trechinho:
"Dobrou as pontas dos jornais num enorme embrulho para jogá-lo no lixo, mas primeiro quis fotografá-lo. Acendeu um refletor; queria que em sua foto se pudessem reconhecer as imagens meio emboladas e despedaçadas e ao mesmo tempo se sentisse sua irrealidade de sombras casuais de tinta, e ao mesmo tempo ainda sua concretude de objetos carregados de significado, a força com que se agarravam à atenção que tentava expulsá-las. Para conseguir colocar tudo isso numa fotografia era preciso conquistar uma habilidade técnica extraordinária, mas só então Antonino poderia parar de fotografar. Esgotadas todas as possibilidades, no momento em que o círculo se fechava sobre si mesmo, Antonino entendeu que fotografar fotografias era o único caminho que lhe restava, aliás, o único caminho que ele havia procurado até então."

O personagem Antonino fotografa o vazio, a ausência de sua companheira após ser abandonado por ela.

E procurando maiores informações sobre esse conto do Calvino, encontrei uma entrevista de Baudrillard de 1999, feita por Sheila Leirner (na internet) que acho que tem uma ligação com o que temos discutido:

(trechos)

S.L. - Antes você não pensava assim. Lembro-me que há alguns anos dizia não estabelecer nenhuma relação entre escrever e fotografar. E que se existia algo em comum era seguir essa coisa que está do outro lado do sujeito, perto do objeto, essa coisa irredutível, que tem uma ausência própria. Você não procurava captar a realidade dos objetos, não queria interpretá-los, decifrá-los…
J.B. - É verdade. Contudo, o que eu busco agora é tomar os objetos em sua literalidade, antes que comecem a "significar". É um pouco como a linguagem poética que consegue existir antes de adquirir um sentido. Quando você escreve teoria, é difícil chegar lá pois o discurso tem sempre um significado. Mas às vezes você entra numa linguagem quase poética, mesmo na teoria…

S.L. - Você sempre diz que não é artista, mas toma os objetos em sua literalidade, em seu "punctum" que você descobre com a sua pura sensibilidade, e, como os poetas, tenta fazê-los existir antes que adquiram um sentido. Você sabe bem que a arte não é apenas uma questão de estética e a arte conceitual está aí para provar isso. Pois que só pensa pelos contrários, talvez você seja um artista apesar de você, não?

J.B. - As vezes essa é a melhor maneira de sê-lo (Risadas)! Mas, veja bem, como você diz, o livro de Barthes não é um livro de fotógrafo. Pode ser visto como um livro metafísico, de teoria, de um pensador. A foto o interessa tanto quanto o texto. Que prazer e paixão pode-se ter por uma imagem, e não apenas o prazer estético. Não é nem mesmo do nível do julgamento estético, pois o "punctum" está além dele, é uma forma de sedução instantânea. É um malentendido falar de sujeito e objeto nessas histórias. Mas é preciso pensar também que é um mito que nós possamos estar além do julgamento. Evidentemente existe sempre o julgamento, como existe sempre o discurso, como sempre existe uma escolha, uma afinidade… é como nas relações pessoais. Mas não sou um artista. A minha jogada é muito mais da ordem do fatal do que do conceitual ou do estético.

S.L. - Antes você não pensava assim. Lembro-me que há alguns anos dizia não estabelecer nenhuma relação entre escrever e fotografar. E que se existia algo em comum era seguir essa coisa que está do outro lado do sujeito, perto do objeto, essa coisa irredutível, que tem uma ausência própria. Você não procurava captar a realidade dos objetos, não queria interpretá-los, decifrá-los…
J.B. - É verdade. Contudo, o que eu busco agora é tomar os objetos em sua literalidade, antes que comecem a "significar". É um pouco como a linguagem poética que consegue existir antes de adquirir um sentido. Quando você escreve teoria, é difícil chegar lá pois o discurso tem sempre um significado. Mas às vezes você entra numa linguagem quase poética, mesmo na teoria…

S.L. - Você sempre diz que não é artista, mas toma os objetos em sua literalidade, em seu "punctum" que você descobre com a sua pura sensibilidade, e, como os poetas, tenta fazê-los existir antes que adquiram um sentido. Você sabe bem que a arte não é apenas uma questão de estética e a arte conceitual está aí para provar isso. Pois que só pensa pelos contrários, talvez você seja um artista apesar de você, não?

J.B. - As vezes essa é a melhor maneira de sê-lo (Risadas)! Mas, veja bem, como você diz, o livro de Barthes não é um livro de fotógrafo. Pode ser visto como um livro metafísico, de teoria, de um pensador. A foto o interessa tanto quanto o texto. Que prazer e paixão pode-se ter por uma imagem, e não apenas o prazer estético. Não é nem mesmo do nível do julgamento estético, pois o "punctum" está além dele, é uma forma de sedução instantânea. É um malentendido falar de sujeito e objeto nessas histórias. Mas é preciso pensar também que é um mito que nós possamos estar além do julgamento. Evidentemente existe sempre o julgamento, como existe sempre o discurso, como sempre existe uma escolha, uma afinidade… é como nas relações pessoais. Mas não sou um artista. A minha jogada é muito mais da ordem do fatal do que do conceitual ou do estético.

S.L. - Depois a coisa pode entrar na historia da arte…

J.B. - Depois a coisa pode entrar na historia da arte, mas é uma outra existência. O "punctum" é uma matriz que escapa à toda categoria institucional enquanto ele existe, depois ele cai no mundo, na mundaneidade estética, e ninguém mais é responsável. Mas eu acho que existe um verdadeiro segredo onde as coisas aparecem e se produzem sozinhas, possuem uma forma de poder e de ilusão. A questão que atravessa o livro de Barthes é "onde está a realidade?". O que você busca, por meio da imagem, é por em jogo essa realidade e verificar, paradoxalmente, que o mundo não é real. Há uma ilusão fundamental que é preciso conseguir captar. Depois, bem, a realidade existe também. Ela existe mas, sou agnóstico, não acredito nela.

S.L. - Porque não ?
J.B. - Se a realidade existe a gente não precisa acreditar nela. Pois se acreditarmos, ela torna-se um objeto de credo. E se for um credo, então deixa de ser uma realidade objetiva. Se ela é uma realidade objetiva, não precisa que nós acreditemos nela pois é objetiva. Porém, se você acreditar nela, ao contrário, você não a estará honrando como uma objetividade e ela passa a não existir mais. É como Deus, você entende? Se você começa a acreditar nele, ele não existe mais enquanto Deus. Torna-se um objeto de credo. E isso não O honra muito, pois na sua Existência Ele não tem nenhuma necessidade que as pessoas acreditem Nele. A única chance de a realidade existir é nós não acreditarmos nela…

S.L. - Pensando bem, não ficou na lembrança muita coisa importante escrita sobre a fotografia. Tem você, Barthes, Susan Sontag, Flusser…

J.B. - É verdade. Mas você sabia que existe um texto fundamental de Italo Calvino sobre a fotografia que ninguém conhece, que se chama "A aventura de um fotógrafo" e que está num livro que se chama "Aventuras" ? Extraordinário ! Nem é preciso mais escrever sobre a fotografia pois tudo está lá. São dez páginas onde ele conta a história de alguém em seu processo de se tornar um fotógrafo. Esse personagem fotografa obsessivamente a sua amante em todas as posições, ela se cansa, o abandona, e ele começa a fotografar todos os objetos que estão lá no mesmo espaço. Contenta-se em fotografar eternamente tudo, e a história termina num delírio…

S.L. - Esse paroxismo o seduz ?

J.B. - É verdade que se estivermos possuídos pelo demônio da fotografia, a coisa termina num delírio, pois uma máquina técnica como essa é delirante em si, lhe dá todas as possibilidades e abre para a loucura!

S.L. - Essa loucura não está relacionada também com o tempo ? Segundo certos fotógrafos, mesmo os mais acadêmicos, existe uma angústia muito grande no delírio temporal. Ali, o presente concreto que pede para ser captado acontece numa fração de segundo, o que é desagradável e maravilhoso simultaneamente.

J.B. - É essa a diferença entre a fotografia e uma atividade estética como o desenho, por exemplo. O "punctum" não está apenas na idéia, está também no tempo. Quer dizer, existe um momento irreversível, imediatamente terminado e os fotógrafos têm razão.

S.L. - Muito embora você esteja no sentido inverso dos fotógrafos acadêmicos, que partem desse "instantâneo", que é o "punctum" no tempo, para fazer uma obra pictórica e linear, que é oposta a ele…

J.B. - Sem dúvida. Para mim a fotografia não acontece senão sob a base da desaparição da vontade estética, apenas como objeto puro…

S.L. - Aí entra a questão da ficção. Uma vez que você toma o "objeto puro" como personagem "em via de aparição" num mundo em cuja realidade não acredita, você está criando uma ficção para que ele exista. Um cenário artificial, composto por meio da fotografia, para abrigar a sua existência. Isso me remete ao trabalho de fotógrafos como Miguel Rio Branco ou Cindy Sherman, que, sem serem acadêmicos, certamente partem da estética e da subjetividade para chegar à narração pictórica, às vezes barroca, dessa realidade.

J.B. - Sim, mas isso é performance ! Nesse momento há um ciclo de atividades que é a construção de coisas e em seguida a representação delas. Eu não vejo onde está o momento original da foto lá dentro. Não é regra geral, mas se a foto consegue apagar o trabalho, fazer uma elipse sobre a construção e a demonstração do objeto, então ela volta a ser fotografia pura e simples. Eu não faço trucagem. Sempre existe um mergulho, uma escolha de luz, uma mis-en-scène subjetiva, mas eu os separo daquilo que vem de fora, eu mesmo venho de fora… E acontece um encontro entre nós dois. Ao contrário de Rio Branco, não há nada de barroco no meu trabalho.

5 comentários:

  1. que legal seu post Elis, eu vou colocar este texto na integra lah no xeroX!
    bjos

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  2. oi Luana,
    te mandei a entrevista na íntegra por email
    pra você colocar na pasta, aqui só publiquei
    alguns trechinhos mais próximos de Calvino e
    Flusser...
    bj

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  3. as entrevistas são muito interessantes. As duas com J.B. e também a com H.C.-B..

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  4. então só para situar esta entrevista é de 1999 e foi publicada no Estadão

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  5. Anónimo3/25/2011

    Em Portugal tive notícia deste trecho por via de um comentário de um brasileiro apaixonado por fotografia que fez o favor de comentar a aventura ou desafio que lancei no Olhares.com.
    Um abraço e agradecido por me forçar a melhorar o conhecimento literário.
    Jorge Eduardo Lopes

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